quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

DIÁLOGOS DE MINHA VAGINA



Se há algo importante que descobri nessa vida foi: amar minha vagina.
Nada surpreendente para uma estudiosa de gênero e feminismo, ser humano responsável com a saúde e bem estar da mesma, adolescente nos anos 80/90 quando emergia o debate sobre masturbação, doenças venéreas e o triste fenômeno da AIDS.
Fui educada para casar virgem!
E pode crer, durante aproximadamente 18 anos só havia conhecido intimamente um único pênis, tempo muito maior que minha existência anterior. Era preciso mudar essa realidade limitada e castradora... até que eu me libertei!
Já no século XXI pude apreciar uma obra marcante em minha vida sob duas formas: a fonte de inspiração (o filme) e a peça teatral dirigida por Miguel Falabella: OS MONÓLOGOS DA VAGINA.
Considero essa importante parte de mim em sua atividade plena. Além disso, como professora e pesquisadora nata, busquei contribuir com o conhecimento, inclusive sendo atendida em hospitais universitários. Mas após passar por uma situação um tanto intrigante, decidi resguardar um pouco mais minha vagina.
Confesso que sentia certo contentamento nas consultas ginecológicas no Hospital Universitário, com aqueles diferentes jovens médicos e médicas observando e estudando minha vagina, me perguntavam com quantos homens eu havia tido relações sexuais como se fosse “lista do beijo”. Até que um belo dia um dos estudantes iniciou o exame com um espéculo e o trocou umas 2 vezes, até seu professor vir e colocar outro espéculo... e achei um abre e fecha demasiado, embora minha vagina já começava a se entediar com tamanha sensação (parecia a última celebridade enfadada); aí optei por fazer minhas consultas particulares mesmo.
Nas diferentes relações que tive a preservei e deixei que desfrutasse as mais belas sensações, sem agressões ou maus tratos, desfrutando uma bela fisiologia do gosto...
Havia encontros regulares com um determinado pênis e outros alternativos com outros pênis preservados, como fazem as vaginas autônomas e independentes, como a exemplo a de Simone DeBeauvoir; Frida Kahlo; Tarsila do Amaral; Madonna – quando uma sequência de sonhos inquietantes despertou meu estado de alerta.
Havia uma mulher morena, com uma escova progressiva mal feita e ares psicóticos correndo com meu vibrador na mão.  Existe algo mais grotesco hoje em dia que uma progressiva mal feita? De cara já estava aterrorizada.
Assim na primeira noite de sonhos eu corria desesperada sem nem dar tanta importância assim para aquele objeto que me dava sempre prazer garantido, mas que era apenas um objeto e nada mais além disso.
A mulher corria irada com aquele olhar esbugalhado que os surtados sabem muito bem revelar, dizia que aquele vibrador era dela já havia 14 anos, que ela tinha até fotos com ele; que ele não queria compromisso com ninguém e queria saber como o conhecia, se eu o usava com frequência. E eu dizia:
-Criatura, o conheço sim, adquiri numa loja virtual e o cadastro foi até gratuito – o próprio sistema o ajudou a escolher devidas afinidades e combinações; mas pode ficar com ele se é isso que você quer. Já usei mesmo, e funciona bem.
Assim, amanheci exausta no dia seguinte e bastante descontente com aquele sonho. Mas na segunda noite havia uma continuidade, eu ligava para o vendedor da loja virtual e pedia um posicionamento da empresa em relação aquela louca obsessiva, e como todo atendimento de SAC hoje em dia que encaminha para vários setores e não há nenhum responsável pela solução dos problemas, sugeriu que eu dissesse que já havia doado o vibrador e que não estava mais com ele!
Acordei com a sensação de achar aquele atendente nada solidário e egoísta, afinal ele ganhava o seu salário para não resolver “porra” nenhuma, e tinha me vendido um produto de precedentes duvidosos. Precisava ir ao PROCOM. Mas na verdade meu corpo já estava maltratado por uma segunda noite sem descanso, meus pensamentos só ficavam voltados para a solução daquele imaginário problema, nem me concentrar direito no trabalho conseguia.
Até que na terceira noite de sono resolvi tomar um relaxante, um chá quente; mas quando tudo fazia efeito uma mensagem que entrava no celular foi o dispositivo perfeito para o encerramento dos pesadelos.
Naquele mundo onírico eu mandei uma mensagem que seria o principio final daqueles pesadelos. A mensagem dizia:
-Olá moça desconhecida que me encheu o saco nas madrugadas por causa do PP (abreviação carinhosa para Pênis Provocador). Transo com ele sim e gozo legal. Não se preocupe, só transo com preservativo. Não preciso de compromisso e me divirto bastante, ele até já foi apresentado a alguns amigos. Enquanto ele me fez gozar e me divertiu, valeu a companhia, agora se ele quiser pular da sua mão e continuar guardadinho no lugar dele, pode vir...
A mulher enfureceu e tentou ofensas pessoais, sem nem me conhecer; se dizia de Curitiba. Poxa, logo de Curitiba onde adoro passear pelo menos uma vez ao ano. Então, mandei outra mensagem:
-Ah e se você continuar me importunando tenho amigas policiais que adoram autuar mulher barraqueira. Assédio sexual, moral e coação também dão medidas protetivas e processos. Se você quiser fazer de sua vida um inferno é só começar mandar mensagem ou qualquer coisa do tipo. Com ele, resolva você.
-Porque eu, sou muito bem resolvida!
-Ah e beijinhos no ombro mal amada!
-Achei seus dados no site de compras. Que a paz esteja com você. E se você espera um “ménage a trois”, eu não curto; cada uma na sua vez!
Finalmente acordei com um sorriso nos lábios e a vagina retesada como quem ganha uma luta. Meu vibrador continuava no mesmo lugar, mas comecei a olhá-lo com certo descrédito... as pilhas andam falhando. Ainda não consegui usá-lo depois dos pesadelos. Mas também minha vagina está tão tranquila e animada que nem pensa nele... afinal o verão está chegando, tempo de renovar energias e ela é muito, muito amada.





quarta-feira, 12 de novembro de 2014

MINHA MULHER TEM CELULITE



Acordei pela manhã e apalpei...
Aquela sensação macia e gostosa... pele, pelo (arrepiadinho – deslizei a mão meio de leve)... e...  massa...
Segurei aquela carne volumosa e senti as ondinhas...
gostosa...
 isso é de verdade... 
...qualquer coisa a gente joga pro lado...
Minha mulher tem celulite... pouca, média... não quero ver muito...mas tem, minha mulher tem celulite...
Falamos pra ela do botox: sua prima aos 40; seu dentista de 55 eu de 48... e ela? ( Acha que consegue chegar aos 45... sem) ... Nem que fosse preciso, maldita cultura, maldito pensamento, maldita economia e o PT ... Ala Shermann; Malu Mulher; Marta Suplicy; TV Mulher...
Criatura bitolada na mídia. Graças a Deus! Não me dá grande despesa!
Ela não está lá... O trabalho que me dá é outro...
Assim ela pensa na saúde, na alimentação, na fofoca, na novela... e por mais que ela ande, por mais que ela trabalhe na sua profissão, ela não deixa de ter celulite.
E eu?
BENDITO SEJA, sou homem. Macho alfa, capitalista... dou livros pra ela ler:  de receita ( os que eu quero que ela faça, dou carícias pra ela se excitar - as que eu quero fantasiar); assim sigo, com ela realizando meus desejos...
E ela? Por ela mesma o que faria? Me romantizaria e criaria uma ilusão?  Daria bem gostoso  pra eu que a sabe comer? (VULGAR.... JULGAR... BRINCAR). Será?
Não... ela é careta, evangélica... e... tem celulite.

 Oba!

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

NERO DI SEPPIA

Para Valdir:
NERO DI SEPPIA

Se eu fosse uma tinta me derramaria sobre teu corpo e tingiria teu pensamento, quase tão monocromático como um acorde de nero di seppia.  Como as estações de Vivaldi, no verão te traria  tons cinza claro desenhando arabescos etruscos em tuas pernas, subindo para teu peito como uma gramínea alimentando-se de todo o sal do mar instalado na areia corrente.

Sopraria a ventos errantes, dunas deliciosas em teus cabelos negros como a noite cintilada de estrelas.

Não consegui resistir a desilusão que abateu-me, nem pude reivindicar que desistisse de teu sonho. Ah política... Que fulgura o meu Brasil não o fará uma nova América. Quero mudar, quero mudança... no monograma desenhando-se não se há de trocar uma ditadura por outra.

Ainda sinto teu cheiro misto de folhas de limão quebradas e aniz estrelado com mel, adentrando em minhas narinas, soqueando de golpe certeiro o meu pensamento. Como é bom pensar em sorrisos, murmúrios e gemidos tão noturnos como as cigarras da primavera.

Tenho a mim, ao meu pensar. Tenho as minhas alegrias, desilusões, e não saberes. Não há ninguém igual a você, a mim ou a João. Nem mesmo os clones de Huxley teriam tal submissão.

Te agradam as indomadas, as faceiras e fazedeiras de vontades... tão antagônico como qualquer temor... Fugiremos para Cidade do México, ou Londres, ou Irlanda, ou Madri se preciso for... Estarei no IRA, no ETA, no front. Mas não carregarei machados, nem foices, nem rancores. Carregarei somente a obscuridão de teu olhar por tamanha contrariedade.

Consigo vistos em Cuba.

Sorrimos? Fugimos?? Há um 32 com cabo de madrepérola em algum lugar de meu passado... sei usar se preciso for... sei bater, soquear, puxar cabelo e cuspir (eu acho). Te protegerei sob a segurança de teu abraço.


Eu brinco, eu jogo, e sigo... mais vivida, mais loira e protegida pela tinta em que ei de deixar de usar.  Sou arte em criação. Não sou uma torrente de fúria de Pollock, nem uma modernidade nostálgica de Malfatti.  

Quero que o ano acabe, quero que a política mude, quero amar simplesmente – se isso é possível... Quero espalhar todas as cores de flores de meu vestido de novos anos.

sábado, 13 de setembro de 2014

O PÂNTANO DE LE GRANDE IDÉE

Hoje fui acordada por minha jovem filha, seus olhos irradiavam energia e vitalidade. Havia uma ensolarada manhã a descortinar. Minha cabeça doía... Não bebi, não festei, não fumei, nem estava com enxaqueca... Perdi o juízo, como diria minha avó... tirei um siso, ainda sofria os efeitos, mas mais adiante me beneficiaria com a extração... diminuiria os efeitos de um bruxismo.

Coisas modernas.
Tive sonhos excêntricos durante a noite.
Acho que nem Freud os interpretaria, ou talvez sim, talvez se ele fosse meu psicanalista, me diria: “-Você precisa transar, sexo te deixaria cansada e você não sonharia.” – Sábio Freud.

Não estou fugindo do tema, qual relação haveria entre meus sonhos e o Pântano?
“Uma grande ideia.”

Não costumamos sonhar com grandes ideias, nem acontecem mais “grandes ideias” hoje em dia. Nem utopias as quais lutar, nem mitologias as quais acreditar.
Já passei do tempo de ficar buscando sentido ao olhar para o passado, mas ele me ajuda. Óh, Deus sabe como! Como me ajuda nas minhas mais loucas interpretações. Outras interpretações são inspiradas especialmente por Clifford Geertz e a Interpretação das Culturas, entre tantas contribuições.

Venho contar dessa vez de um lugar inusitado, cercado de vegetação gramínea, aquosidade e répteis (os quais quero distância), tenho verdadeiro horror a sapos e afins. O Pântano Le Grande Idée é de uma biodiversidade fantástica, há também agrupamentos e mutações de espécies, como os que vemos com os políticos que vivem mudando de partido; embora esse lugar, tenha sido chamado assim, acredita-se que há muita semelhança com a demanda política de nosso país, em que o sonho de muitos mortais, e não o meu, meus sonhos são mais simples e malucos como os de Alice e o País das Maravilhas, mas há quem sonhe ser um representante na rentável e nada confiável máquina pública.

Estamos prestes a eleger mais um representante presidenciável e eu vou contribuir com mais uma eleição. Não somente por me sentir uma cidadã atuante, mas também por “ganhar” seis dias de “folga” por tamanha contribuição. Sou solidária. O prêmio é a consequência, embora tenha sido considerada na colaboração; seria também a causa? Bem, eu moro no Pântano, vivo sob suas normas, seus valores, sua cultura, seus ritos, suas cavernas.

Geertz escreveu a introdução de seu livro em 73, um ano antes de eu nascer. O cara já sacava tudo, tudo mesmo. Será que usou LSD, e aqueles baratos loucos dos anos 70? Perdão, segui o curso das borbulhas de um moscatel barato. ..  (coisas que Marx não previu, e por mais incrível que pareça não estava aqui para ver essa reinvenção capitalista do comunismo, a globalização e o consumismo). Estou chegando aos 40, sou brasileira, mulher e sei o que é um moscatel, coisas não muito comuns às mulheres naquela época.
Bem, a semelhança entre o que Geertz trazia à tona naquela época sob seu olhar antropológico e o Pântano em que vivo, é algo que me leva imaginativamente aos rituais balineses que ele descrevia, aos círculos dos rituais em que as tribos se encontravam e as reações psicossomáticas que manifestavam. Não se tratava apenas de uma canalização de energias para conectar espíritos, mas acima de tudo da incorporação de uma cultura, de um estilo de pensamento que se transforma em ação.

Tenho medo, tenho sonhos. 

Temo perceber que a vivacidade de minha filha numa bela manhã de sábado seja ligada apenas ao fato de que há liquidação na fábrica de uma marca conhecida na moda local. Temo não acreditar mais em nenhuma perspectiva política, e que a alternância de poder se torne tão banalizada quanto os Deuses pagãos do Olimpo; ou em contradição sejamos a parte esquecida da Terra chata e redonda que os gregos acreditavam existir.
Esse é um escrito sem poesia, talvez queira fugir à hipocrisia. Minha filha chega, me tirando desses devaneios translúcidos, pra se arrumar para sair. E ela acaba de dizer: - Ei eu sou tua filha...
 É sua segunda eleição (que ela vota), vivemos no Pântano... ela ainda tem vitalidade, e nós? Falta-nos uma grande, boa e criativa ideia.

terça-feira, 22 de julho de 2014

QUANDO MEUS BRAÇOS PRA TI SE ESTENDEM...

Olho retratos retráteis, táteis, tão vívidos, tão tocantes como minhas mãos andarilhas por meus seios desnudos. Dói-me o sentimento. Sinto a solidão de meu corpo. Olho retratos espelhando minhas saudades...

Mas as saudades dos retratos assim se amenizariam... se tu viesses ver-me... assim te esperaria... banhada em baunilha e alecrim... ao final da tarde mansa... lânguida sob a luz das primeiras estrelas... Abriria minha janela e não falaria em economia.

Deixaria que tua pele macia encostasse suavemente em meu pescoço, para sentires meu doce cheiro de alegria, e eu, no teu cheiro de orvalho da manhã me inebriaria...

Ah se tu viesses ver-me eu te falaria à boca pequena, como se contasse um segredo a um colibri; me avizinharia da tua boca roxa de vinho e cada letra minha na tua sairia, mas não as deixaria escapar para te contar das políticas nacionais sem antes morder-te segredos... medos... desenganos...

Respiro e minha barriga de ar se encarrega, solto tudo, sopro um vento, é teu nome que de minha boca sai. Desejos...

Ah se tu viesses ver-me eu te cantaria uma canção sevilhana sob um olhar taciturno de Velázquez. Deixaria que me tocasses de mansinho, e eu me movimentaria de um lado e outro, ritmando só para escutar o eco de teus cadenciados passos...

Não te enganes com minhas aparentes bondades... são sortilégios...


Ah se tu viesses ver-me... deixaria que me rasgasse a roupa, me mordesse a carne e sentisse o peso de minhas mãos... mas jamais te amaria... falta-te as pedras das estradas... falta-te a Gitã... falta-te perceber que minhas asas estão dobradas porque ainda não consegues voar... quando meus braços pra ti se estendem.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

MEU NAMORADO VIVE EM UMA ILHA

Essa é uma dessas histórias de ocasião. Alguns fatos são verdadeiros , embora a verdade sempre indomada, tenha muitos jeitos de ser...

       Conheci Vladimir Cortez em Cuba.
        Início de século XXI, o mundo não acabou. Eu estava em um congresso de educação e Vladimir num de medicina, éramos de outro lugar. Precisamente estávamos em Havana, na festa do centro universitário.
        Vladimir acabava de levar um "fora" de uma bela mexicana. Eu, estava ofegante de dançar com um colega costa-riquenho.
        Sentei-me ao bar e me deliciava com o preparo de um delicioso mojito. O barman me serviu e sinalizei em direção a Vladimir, havia algo entre sede e desalento em seu rosto quase sempre imaculável:
       -!Por favor, sirva-lo. ?!Necessita, como no?!
       Vladimir não entendeu bem o que aconteceu e quis pagar o drink, o barman piscou: ...-La señorita...
[Solidariedades]
        Eu tenho namorado.
        Brindamos e Vladimir me contou que estava em um congresso para ortopedistas. Acho que nunca conversei com um ortopedista antes: nunca quebrei braço, perna, essas coisas, só a "cara" algumas vezes. Quando penso nesse encontro, penso em pequenos episódios de vidas sem importância. Não consigo descrever a imensidão ou detalhes daquele lugar, é como relatar o cenário sob uma visão de viajante apressada que se deslumbra com o exótico e o superficial; isso não é Cuba.
         Tudo se passou em um tempo de urgências, desses em que o tempo não pode passar em vão.
         A sensualidade, o erotismo, a libidinagem, noite caribenha, salsa caliente e o ardor das críticas à política local balançaram nosso estado de alerta quase sem fim... ahhh essas mentes intelectuais perdidas na linguagem desperta dos sentidos, dos desejos. Os sexos, o sexy, mojitos, prazeres.
         O garçom usava um safári caqui.
         Vladimir fica lindo com camisa verde clara e bermuda de linho palha. Achei que ele tivesse descendência oriental: olhos levemente puxados, fala baixa, mansa, segura. Com certeza a bela mexicana ficou assustada. E o olhar de Vladimir ein?! Que olhar marcante! Desses dominador, de homens que dominam na iminência de serem, de alguma forma, bárbaros heróis. Mas, que outrora são suspeitos de crimes imperfeitos, como todos os homens solteiros depois dos 40: de caráter desarraigado, quase fantasmagórico e com decência duvidosa.
          Acho que me apaixonei... não sei se foi a salsa, o rum, o aroma dos charutos, Vladimir, aquela ilha... sim, com certeza me apaixonei.
          Espantei Vladimir quando roubei uma flor. Não consigo me manter aferroada a um mesmo código de conduta. Foi instintivo, eu via apenas um espaço puro diante de mim aonde as flores se abrem infinitamente. Não a roubei por cobiça, foi degustação gratuita, a flor era comestível. Sou uma ladra confessa: já roubei um espanto de uma senhora, um sussurro de um menino, um sorriso gostoso de uma bebê (que guardo numa lata de biscoitos para saborear depois de dias amargos), roubei um beijo de Vladimir.
          João me defenderia se um dia fosse levada a julgamento por meus roubos. Mesmo dizendo, que às vezes eu o assusto, ele roubaria mais flores pra mim...ele é meu namorado.
          João sabe bem que o furto é obra de meus sentires marotos que se negam a crescer (em parte por amar a ingenuidade, em parte pela transgressão latente). João gosta de me mimar, me surpreender com a realização de alguns caprichos e cozinhar frutos do mar deliciosos no meu aniversário, adoro suas vieiras e sua taça William's. Ele já me levou pra dançar num barzinho badalado mesmo sem saber dançar. Eu gosto disso, gosto do inesperado, do riso leve, do cafuné e de seus três cachorros velhos.
          E todavia, em nosso caminhar individuais, Vladimir, João, eu... tentamos nos vigiar com o duradouro, estamos nos lugares que devemos estar, fundados em um puro acontecer. Então tento me libertar das "fôrmas" que atrapalham meu juízo, sigo com alguns talvezes.
          Nós três seguimos cheios de não quereres, não compromissos, não entregas... tão carregados de distanciamentos, de nos fazermos tão solitários em nossas ilhas, até chegarem a me perguntar por que tanto me veem nas fronteiras entre Solidão e Otimismo. Respondo: des (Espero)...
          João, escritor e faroleiro, mora numa ilha. Ainda que o veja de 40 em 40 dias quando a barca leva suprimentos, vão se espalhando meus sóis quentes e plenos pelo mar e tenho a sensação de aconchego. Sem Cuba, sem culpa, sem intelectualidades. Vou olhando a paisagem e o barqueiro, estranhando: -O que contém para o barqueiro nas idas e vindas do farol? Há um fumo descabido? Uma boa prosa? Como segue sempre levando tudo que precisa, sem nunca faltar nada?
          Pra que falar de amor quando se tem os oceanos?
          Eu, graças a Deus, nunca estive em tormentas.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

LADRÃO DE SABOR - Uma homenagem ao 18° aniversário de Gabriel

   Havia em Antuérpia, um lugar nem tão distante daqui, um jovem chamado Raphael. Seu nome soava como um refrão em coro de gregorianos e seu rosto, emoldurado por resquícios de cachos avermelhados lhe impingiam uma aparência incógnita, séria.
     Observador, tímido e vezes de ex garoto traquinas, pouco se revelava sobre seu tácito senso de humor e sua paixão por histórias em quadrinhos. E assim, como tantos jovens comuns nem sequer sua mãe, uma simples costureira de remendos e bainhas, que a muitas custas tentava pagar o INSS e arriscar a sorte na possibilidade de comprar uma casa própria, sonho de sua vida (sua casa, sua vida); nem assim, por tanto trabalho e tamanha singeleza, conseguia entender o que se passava sob os olhares dadivosos  de Raphael.Olhares que carregavam sobre si uma satisfação plena e pronta e que espalhavam certa alegria sobre as outras pessoas.
      Mas era bem por estes sentidos, esses dizeres de olhares e não dizeres de palavras em que sua mãe surrupiava sinais, que seu pensamento se tornava impróprio e inadequado...
       Ora, como podia Raphael ter tais olhares vivendo em Antuérpia?
       Crimes, corrupção, desastres, traições, montes, praias, drogas e amizades. Tudo acontecia em Antuérpia.
       O que poderia ocultar o jovem naquela pequena meia água em que viviam?
       A mãe, curiosa coo tantas mães já havia revirado todos os cômodos, potes, colchões e caixas. Revirou tábuas soltas e até se espetou revirando pensamentos. Nada além da latinha de economias. Acordou de seus devaneios com o chiado da panela de pressão.
      Qual a graça de uma simples vida ao lado de uma mãe simples e miserável, um pai que nunca se ouviu falar (pois a mãe engravidara de um caixeiro viajante a quem nunca teve notícia: nem de morte, nem de vida - duvidava-se até mesmo da existência do homem)?
      Qual a graça de acordar de acordar cedo, estudar, voltar pra casa, almoçar, ajudar a mãe nas entregas e nas cobranças e ajudar numa oficina mecânica e fazer um cursinho gratuito de informática? Qual graça tinha subir e descer ladeiras, correr da chuva e se molhar?
      E ainda assim, a noite, depois das orações ao Pai Nosso e Santo Anjo, ainda que sorrateiras e invisíveis aqueles olhares dadivosos pareciam se doar, até entrarem na imensidão do sono e na fantasia do sonho.
      Assim seguiram ambos seus caminhos entre remendos e bainhas, muita graxa e tecnologia que Raphael já adulto decidiu revelar seu segredo. Ajudou a mãe a arrumar a casa: colocaram toalha nova de renda na mesa, arrumaram uma bela mesa à dos, acenderam velas e ligaram o som - uma suave música tocava. Raphael pediu que sua mãe ficasse arrumada como no dia de sua formatura, e assim ela se fez bonita, como quase nunca ousava usar.
      Pouco antes de partir para uma nova vida Raphael lhe pediu que observasse cada cômodo de sua casa e percebesse sua realização, sentou com ela gentilmente no sofá e lhe mostrou uma pequena caixa de linhas Drima, de papelão já envelhecida do tempo. Dali foi tirando pequenas lembranças roubadas e mostrando: um guardanapo com um beijo marcado - o sabor da paixão; um lencinho manchado de lágrimas - o sabor da melancolia; bolinhas de gude de carambola - o sabor da alegria; um papel com uma frase de Gandhi - o sabor do saber, com as dez divisões que havia na caixinha, dez sabores roubados ele declararia.
      Somente um não estava ali, porque não se encaixava na transgressão, mas na disciplina velada do economizar, entregou à mãe um envelope de papel pardo com anos de adiantamento da prestação da casa própria e o documento de propriedade do imóvel em nome da mãe, lhe proporcionando o sabor da vitória.
      Sim, a mãe estava certa, Raphael fora um jovem de Antuérpia, fora um gatuno, um jovem ladrão de sabores.