quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

LADRÃO DE SABOR - Uma homenagem ao 18° aniversário de Gabriel

   Havia em Antuérpia, um lugar nem tão distante daqui, um jovem chamado Raphael. Seu nome soava como um refrão em coro de gregorianos e seu rosto, emoldurado por resquícios de cachos avermelhados lhe impingiam uma aparência incógnita, séria.
     Observador, tímido e vezes de ex garoto traquinas, pouco se revelava sobre seu tácito senso de humor e sua paixão por histórias em quadrinhos. E assim, como tantos jovens comuns nem sequer sua mãe, uma simples costureira de remendos e bainhas, que a muitas custas tentava pagar o INSS e arriscar a sorte na possibilidade de comprar uma casa própria, sonho de sua vida (sua casa, sua vida); nem assim, por tanto trabalho e tamanha singeleza, conseguia entender o que se passava sob os olhares dadivosos  de Raphael.Olhares que carregavam sobre si uma satisfação plena e pronta e que espalhavam certa alegria sobre as outras pessoas.
      Mas era bem por estes sentidos, esses dizeres de olhares e não dizeres de palavras em que sua mãe surrupiava sinais, que seu pensamento se tornava impróprio e inadequado...
       Ora, como podia Raphael ter tais olhares vivendo em Antuérpia?
       Crimes, corrupção, desastres, traições, montes, praias, drogas e amizades. Tudo acontecia em Antuérpia.
       O que poderia ocultar o jovem naquela pequena meia água em que viviam?
       A mãe, curiosa coo tantas mães já havia revirado todos os cômodos, potes, colchões e caixas. Revirou tábuas soltas e até se espetou revirando pensamentos. Nada além da latinha de economias. Acordou de seus devaneios com o chiado da panela de pressão.
      Qual a graça de uma simples vida ao lado de uma mãe simples e miserável, um pai que nunca se ouviu falar (pois a mãe engravidara de um caixeiro viajante a quem nunca teve notícia: nem de morte, nem de vida - duvidava-se até mesmo da existência do homem)?
      Qual a graça de acordar de acordar cedo, estudar, voltar pra casa, almoçar, ajudar a mãe nas entregas e nas cobranças e ajudar numa oficina mecânica e fazer um cursinho gratuito de informática? Qual graça tinha subir e descer ladeiras, correr da chuva e se molhar?
      E ainda assim, a noite, depois das orações ao Pai Nosso e Santo Anjo, ainda que sorrateiras e invisíveis aqueles olhares dadivosos pareciam se doar, até entrarem na imensidão do sono e na fantasia do sonho.
      Assim seguiram ambos seus caminhos entre remendos e bainhas, muita graxa e tecnologia que Raphael já adulto decidiu revelar seu segredo. Ajudou a mãe a arrumar a casa: colocaram toalha nova de renda na mesa, arrumaram uma bela mesa à dos, acenderam velas e ligaram o som - uma suave música tocava. Raphael pediu que sua mãe ficasse arrumada como no dia de sua formatura, e assim ela se fez bonita, como quase nunca ousava usar.
      Pouco antes de partir para uma nova vida Raphael lhe pediu que observasse cada cômodo de sua casa e percebesse sua realização, sentou com ela gentilmente no sofá e lhe mostrou uma pequena caixa de linhas Drima, de papelão já envelhecida do tempo. Dali foi tirando pequenas lembranças roubadas e mostrando: um guardanapo com um beijo marcado - o sabor da paixão; um lencinho manchado de lágrimas - o sabor da melancolia; bolinhas de gude de carambola - o sabor da alegria; um papel com uma frase de Gandhi - o sabor do saber, com as dez divisões que havia na caixinha, dez sabores roubados ele declararia.
      Somente um não estava ali, porque não se encaixava na transgressão, mas na disciplina velada do economizar, entregou à mãe um envelope de papel pardo com anos de adiantamento da prestação da casa própria e o documento de propriedade do imóvel em nome da mãe, lhe proporcionando o sabor da vitória.
      Sim, a mãe estava certa, Raphael fora um jovem de Antuérpia, fora um gatuno, um jovem ladrão de sabores.