quinta-feira, 6 de junho de 2013

CONTO: O RETRATO DE JOÃO NARCISO VÁLCEZ

O RETRATO DE JOÃO NARCISO VÁLCEZ

João Narciso Válcez não era eleito de muitas palavras, mas sabia usá-las quando as escolhia. Dia ou outro dizia o que pensava. Sempre, sempre pensava o que dizia.
Elucidava.
Era tido como sábio; grande genitor de precisos pensamentos. Porquanto Martina nunca ousava os dispersar.
Vinha atormentado por seus demônios até chegar ao ribeirão sem ponte.
Parou.
Olhou finalmente a paisagem e sentiu a força da maresia. Estava em praia Héstia. Não atravessaria o ribeirão, nem de barco. Decidiu não reivindicar ponte alguma. Deu meia volta e seguiu “toda a vida reto” (retidão era uma de suas qualidades). Para ele a cada meio, havia um caminho, coisas budistas (não que religiosidades fossem seu forte). Seguia suas vontades. Seguia?
Nascera assim... urdido de pensar que sua mãe nunca o achara um belo bebê – sem traumas – homem de hombridade, como seu pai o ensinara. Dentre tantos ensinamentos ainda lhe serviam os de lustrar os sapatos e saber cortejar as mulheres.
E Martina... ahhhhhh, Martina sempre a enredar-se sedutora e lânguida. Como a admirava!
Olhou uma foto sua. Pensou em seu retrato...
Para Rubem Alves um retrato só aparece ao fim de uma meditação metafísica. É o ponto final de uma busca. O retratista busca capturar o pássaro mágico invisível que mora na pessoa a ser retratada e que, vez por outra, faz uma aparição efêmera. João não conhece Rubem Alves. Rubem não concordaria com a atual política comunista. Mas, as crianças do semiárido têm fome e seus pais também.
João sentou-se no sofá.
Um belo escocês envelhecido, mais de 60°C atingindo um blend especial... malte, gelo e lembranças seguros em sua mão, noutra um Romeu y Julieta. Não era comumente fumante, talvez fosse o prazer de externar o peso das bagagens carregadas, já era hora de começar a carregar apenas o que lhe coubesse no bolso e no coração... baforadas.
Uma pequena nuvem de nostalgia. Saudades de uma Cuba desconhecida: da sensualidade da salsa, da organização das comunidades, da simplicidade da medicina, do candomblé cultuado sem preconceito, do patriotismo e do sonho utópico de um Che figurativo.
Ella cantava solta, e brincava com a voz.
Mãos à testa e deu-se conta de seu hipermetropismo. Por que estava sem lentes? – Antítese – Para que enxergar naquele momento?
Vinham suaves ondas alegres à sua memória: o aroma do cozido de sua mãe; a graça da puta colombiana de García Marquez (bela mulher); e, Martina, melindrosa. Um leve sortilégio animou seu pensamento:
- Vou submetê-la a meus caprichos.
Depois, não resistiu ao vício: olhou o relógio, um Dumont original ao menos;  e Cronos, o deus grego sempre a engolir seus filhos...  
Mirou suas mãos. A boa sorte de sua vida estava ali, em suas mãos. Olhou o braço arranhado por Martina.
Tirou os sapatos, examinou os calos em seus pés e a dor estalada dos ossos de seu corpo. Respirou profundamente. Isso era estar vivo.
Ella calou-se. Sentiu o silêncio dos mundos ao seu redor, um universo aparentemente cálido.
Chegou Tchaicovsky.
Alongou, aqueceu. Narciso Válcez olhou-se no espelho. Venceu preconceitos, surrupiou vaidades. Nem toda a psique resistiria a sua beleza. Estava novamente altivo e elegante, leve e doce homem subiu ao palco e levantou a sufrágica bailarina.





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