quinta-feira, 6 de junho de 2013

COITADINHO DO ADÃO - PRIMEIRO CONTO

COITADINHO DO ADÃO      (04/2008)



Sou feminista. No alto da exuberância de minhas manifestações feministas indomáveis senti um carinho amistoso, certa pena de Adão – talvez seja por uma recente descoberta, talvez por carma.

Tudo aconteceu assim, como pequenas agulhadinhas que vão costurando uma lacuna no peito e subindo de mansinho, picando e apertando, de um lado e de outro. Um caseadinho bem pequeno, que está lá. Cerzido.

Após uma leitura sobre a lenda de Lilith, que fizemos em grupo com conseqüentes ou inconseqüentes discussões, uma idéia sobre ele foi surgindo, tomando corpo – e que corpo! – ganhou vida na minha contradição E eu, que sempre achava que os primeiros em tudo são muito mais prepotentes e arrogantes, fiquei com dó do primeiro modelo de homem. Gente, que super dodói essa criatura, sem mãe nem pai, nem seu sexo sabia direito qual era. No princípio de tudo...

Deve ter sido bem complicado ser o primeiro de uma espécie. Pra começar o Todo Poderoso fica de onda com o cara: põe rabo, tira rabo, mexe um dedinho aqui, dá uma corzinha ali; faz dele uma figura andrógina – sabe, dois em um – aí quando ele está no Paraíso todo enturmado com os bichos que ele pôde nomear, fodendo umas gazelas, metendo nas cabrinhas, ganhando umas lambidas de ovelhinhas... Inventam que a criatura tem de ter mulher!

 Ele até fica animadinho, acha que vai ser legal andar de mãos dadas na beira do lago, catar pedrinhas de sal no Mar Morto, roubar uns frutos proibidos. Aí, o Todo Poderoso, que cansado de suas majestosas criações – estão pensando que criar um mundo é assim fácil, é? - baixou o padrão de qualidade e criou uma fêmea de tudo de nojento, com sangue, saliva e a chamou de Lilith.

Pô! Adão, uma figura tão pró ativa, extremamente colaborador na criação do mundo, nem foi consultado sobre seu modelo preferido, teve de se contentar com aquela coisa nojenta como quem ganha uma injeção na testa.

A mulher veio: feia, fedorenta e sexo maníaca. Adão até tentou quebrar o gelo, no Cântico dos Cânticos ele fez um esforço bastante original: buscou admirar sua beleza, estabelecer uma relação com a beleza das montanhas, das gazelas (ah, as adoráveis gazelas que ficavam bem quietinhas, paradinhas só sentindo o “vuco-vuco”); de nada adiantou.

O que a mal agradecida fez: foi bater perna pelo mundo, queria transar à moda dominadora, só faltava um chicotinho, se bem que se ele tivesse ainda aquele rabinho seria uma perspectiva interessante. Bem, já não bastava tanta injuriação, o Todo Poderoso achou que aquela mulher não prestava, que o Adão merecia outra e dessa vez ia ser carne de sua carne, sangue de seu sangue.

Adão ficou esperançoso e tudo, imaginou que fosse participar de um ritual meio místico, de dar um corte de leve no pulso e deixar cair um sangue em algum lugar e ali germinaria uma nova mulher. Mas sabem como é o Todo Poderoso, né: magnânimo, exagerado. Mutilou o pobre do Adão pra criar a nova mulher.

Essa até que era mais bonitinha, deixava ele fazer como as cabrinhas, mas muito sem gracinha. E o tempo foi passando, passando e de repente as duas mulheres se encontraram – e mulher quando se encontra pra falar de marido... se as orelhas começam a arder, vem chumbo grosso. E não é que a sem gracinha começou uma ladainha: que Adão nem reparava mais nela, ela só vivia com os dois ranhentinhos (Caim e Abel) agarrados nas tetas e se pegando, que o corpo não era o mesmo, que seu trabalho não era reconhecido, que Adão vivia mais no meio do mato do que com ela, parari, parará... Os dois guris, vendo a agitação da mãe caíram no maior berreiro e a outra só ria, gargalhava da desgraça alheia.

Aí ele não agüentou, não agüentou mesmo, e gritou: - VÃO À MERDA! PÀRA COM ESSA PORRA! ISSO É UM INFERNO! EU É QUE NÃO AGÜENTO MAIS!

O Todo Poderoso, que estava aproveitando suas milhagens grátis e foi dar um role na Lua, pressentiu que vinha tempestade por aí e que Adão estava entrando em colapso nervoso e interveio. Tinha que dar uma moral pro cara. Então, dirigindo-se a primeira mulher, deu uma bronca e mandou a “nenonha” viver condenada no inferno com os outros demônios. A sem gracinha acabou vivendo o inferno em vida mesmo, teve que lavar, cozinhar, limpar, dar conta dos ranhentinhos – muito mal e porcamente por sinal, tanto é que um acabou matando o outro – e ainda teve de assumir toda a culpa pelos pecados da humanidade.

E o Adão, nisso tudo, teve que ter atitude de macho! Teve que ao menos em postura, superar suas carências: sem pai nem mãe e mulher que preste; assumir seu posto de primeiro homem, exemplo que afirma a onipotência do Todo Poderoso. Usou dos recursos da gestão para organizar a ordem “natural das coisas” - sabem que ele deixou o cavanhaque crescer para ganhar um toque mais dominador, ficou uma graça aquela cara de mau.

Ah, como eu sei disso tudo, assim tão ilustrativamente... É que depois da discussão no grupo, eu fui passear numa fazenda, olhava umas ovelhas imaginando um assado bem suculento, daqueles com marinada líquida de vinho, alho, mel, mostarda, pimenta calabresa, pimentão, cebola, alho poro, cheiro verde; depois um assado lento e cuidadoso em rolete e fogo de carvão, com umas batatas cozidas e arroz soltinho acompanhando, um molhinho de leve... e comentava sobre a leitura com alguém, achando que estava inspirada a escrever uma crônica, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, sobre como a mulher vem sendo subjugada desde a criação. Escutei um sussurro, marcando um encontro atrás de uma determinada árvore no pomar.

Curiosa, fui. Vocês acreditam que quem aparece era uma ovelha chamada Doli, achei que estava doidona e estava vendo coisas; ela disse que não. Que ela conhecia outra versão para meu relato; e quanto ao lance da comunicação: eu não devia me espantar, que era uma revelação de um segredo universal, que todos os seres vivos estabelecem contato entre si, coisa de ecologistas, na real.

O que Doli queria me dizer era que ela é de uma geração muito, muito antiga de ovelhas e suas histórias são passadas de geração em geração. Sua tatara tatara tatara e lá vai cacetada avó, contava a história de um homem, um tal de Adão que ficava atento às mudanças climáticas e ajudava o rebanho a se abrigar,  “sabia alegrar uma gazela como ninguém”, ajudava a parir nos partos difíceis, até cantar com os pássaros ele cantava; um cara muito camarada. Mas, no fundo daquele coração tinha um pobre infeliz, estressado com a sua vida e só encontrava paz no refúgio com os animais. Um cara que lutava diariamente para alimentar uma família (bem grandinha por sinal, para quem era filho único de ninguém); agüentar as manias de um chefe centralizador, que vivia se metendo em sua vida; profundamente frustrado por não conseguir, de jeito nenhum, entender o que se passava na cabeça da mulher. E ele: TINHA DUAS!


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